quarta-feira, maio 03, 2006

#10 Poema Escrito em Tempo Real, de Leandro Rafael Ribeiro

Devia:
1. estar a estudar para os exames
2. estar a estudar para os próximos testes
3. estar a trabalhar no jornal da escola
4. estar a dever qualquer coisa que nem importa bem o que seja, desde que se deva
Devia...
E sei que, em breve, estarei, concordantemente
conscientemente
responsavelmente fazendo o que devo.
Porque eu, oh eu!, sou muito responsável,
extremamente responsável
magnanimamente responsável.
Quando era pequeno e bebi os refrescos por uma palhinha só para ouvir aquele barulho giro de que, em garoto, se gosta do líquido a surripar-se pelo cano exíguo do instrumento, nessa altura (em que eu também era diferente noutras coisas do que sou hoje: por exemplo, gostava de ficar sentado em frente à máquina de lavar loiça a ouvi-la, velha, rabujar com um neto que não tinha), nesse tempo eu responsabilizei-me de ficar sempre responsável.
Eu sou muito responsável.

Por isso é que até estou a escrever este poema.
Porque é uma grande responsabilidade ter um sítio na net
Porque há indivíduos (que eu não conheço) que vêm cá ler tudo o que digo.
Tudinho, tudinho, tudinho! Eles também são muito responsáveis em, com regularidade, ler.

Ah! Rai's parta a responsabilidade! Rai's parta o dever!
Sinto um gosto agreste (como se tivesse mastigado uma urze digerida com pedras pequenas que as cabras engolem enganadamente quando pastam) de ter vindo do teatro.
Não entendo (oh, claro que entendo! Só que entendo por bem que não devo entender) porque sucede deste modo, exótico.
Os meus colegas de palco estavam todos muito contentes. Eu devia estar contente?
(Digam-me: se eu devia, eu torno-me já contente! Não esteja procedendo contra a moral social!)

Sinto que falhei, redondamente,
quadrangularmente,
paralelepipedicamente,
triangulamente, tudo o que era simples e me pediam que fizesse.
Na realidade, fiz tudo o que era simples e me pediam que fizesse.
Se ao menos percebesse o absurdo do que está mal nisto!

Teatro. Te-a-tro.
(Eu devia...)
Odeio o teatro, porque nele revejo, lucidamente, a minha hipocrisia.
(Hipocrisia vem do grego e etimologicamente liga-se a actor. Eu sou culto. Disseram-me que convinha [não devia no sentido estrito do termo, mas convinha muito, muito, que é como quem diz que devia, só que num eufemismo])
Actor, entendo que sou só, nietzscheanamente, aparência da aparência.
Não é um ser real que, fingido, imita um imaginário (isso é o que faz toda a gente normal e o que é normal é sempre o que devia ser: raios que falho no dever!)
Mas eu, imaginado eu mesmo, que copio uma realidade que, só por uma mero fortuito acaso, não acontece (mas só porque, olha, aconteceu assim) não ser eu.
E o que eu sou, não é eu - é outra coisa qualquer, outra hipocrisia.

Quando conjugo verbo ser, nunca digo a primeira pessoa do singular.

Sou.
Tu és.
Ele é.
Nós somos.
Vós sois.
Ele são.

Mas, insisto, nunca tentem subentender qualquer sujeito.
De tudo, recebe, apenas, o que, aberto, te oferecem, claro.

O que sou não concorda com o meu eu.
(Por isso não os juntem!)
O que eu sou é uma coisa qualquer, esquisita, da qual não tenho bem a certeza, só podendo afirmar com a que não tenho que eu não é de modo nenhum
jamais
impossivelmente o que sou.
Eu lá hei-de ser qualquer coisa quando digo sou, eu é que não sou!
Só tudo o que quiserem, só não sou eu!
Mania das pessoas de teimarem na mentira!

Eu sei que isto está tudo mal:
Que eu devia ser um eu facilmente identificável, mas que querem? se eu fosse eu, dizia a mim mesmo, muito severo, com um Salazar com bigode «Sê eu!» e pronto! era eu!
Mas não sou! Sou o Salgueiro Maia!
Que grand'a baralhada...!
E o pior, é não ser carta nenhuma do baralho, mas ser o baralho, uma substância que em si, por si, não existe, mas é tão somente a combinação de muitas substâncias que, em si, por si, existem.

Ora descobri: eu não existo!
Declaro a verdade infalível da minha não-existência, total
completa
irrevogável!
Eu não existo!
Penso, mas não existo (e agora eu rio-me, rio-me, rio-me [como uma vaca gorda que rola pela colina a abaixo a rir-se muito, a rir-se muito, a rir-se muito] do Descartes! Palerma do Descartes! Com esta, já morto, é que ele não contava!)

O mais engraçado em não existir é que, no fundo, eu existo em todas as coisas, só porque estou em todo o lado, obviamente, não existo.
Sou como Deus.

Isto dá-me um gozo danado!
Vocês nem sabem o gozo danado que isto me está a dar!
Mas que gozo danado!
É mesmo um gozo danado!

(agora aqui eu volto-me a rir muito, muito, muito)

Isto de não existir é divertidíssimo.
A minha mãe já me chamou «Ó Leandro, vem tomar o banho!»
Mas eu não existo, por isso não posso tomar banho! Eh eh eh eh eh!
Isto é divertidíssimo, íssimo, íssimo! (Álvaro!)

Amanhã também não vou à escola: não existo!
Vai ser um espanto para os professores: «O Leandro não existe! Que coisa lhe havia de acontecer!»
(Falarão de mim como alguém que teve um acidente, sofreu um atropelo muito chato, e foi para o hospital - não que esteja em estado grave, mas lá tem de ficar uns dias e teve de levar pontos, que coisa aborrecida!)
Os meuas amigos, esses, espertos
raposos, vão comentar «Pronto, aí está! Eu sempre disse que, dia sim dia não, ele deixava de existir! Era inevitável! E pronto, agora lá está ele: inexistente!»
Os meus pais vai ser um pouco mais complicado, o caso, mas calculo que acabarão por achar confortável a minha inexistência, como um colchão japonês, daqueles duros, que, quando não os conhecemos, a gente não quer dormir lá, mas dizem-nos que é muito saudável para a vértebra e nós vamos na lengalenga e lá dormimos, muito mal, muito mal, diga-se de passagem, mas dormimos, só para fazer vontade ao dono da casa.

Isto realmente de não existir é brutalmente divertido!
De facto, deve ser por isso que o Buda se está sempre a rir.
Nunca vi uma estátua do Buda em que ele não se estivesse, como um avô careca, a rir, como se achasse muita graça àquilo tudo (não acha nada, mas pronto).
Agora eu, eu acho uma graça diabólica a isto tudo!
A estar sempre a repetir a palavra graça
graça
graça
graça
graça
graça
graça
Só para constatar como, quando escrita verticalmente em série, dá a impressão que a fila está torta!
Isto é realmente divertidíssimo! Nunca me diverti tanto na vida, nem quando , tu lembras-te?, eu ia a fazer qualquer coisa e aconteceu aquilo - foi tão engraçado! Embalo essa memória indistinta com todo o carinho dos marsupiais do mundo.

Quando eu for grande vou ser um koala, para estar sempre a dormir, a dormir pendurado de um ramo de uma árvore.
Porque dormir é a coisa mais parecida com a não-existência: aconselho vivamente toda a gente a dormir - se for tão divertido como é não existir!
Eu não sei como é dormir. Nunca dormi: tenho sempre insónias.
Insónias pelo remorso de um crime que não cometi
por aquela situação embaraçosa que nem me aconteceu
por aquela palavra que eu podia ter dito tão oportunamente, e não disse.

O meu pior é Inferno é a lembrança de todo o Bem que não fiz.
O pior, é fazerem equivaler sempre o dever ao bem.
Num mundo justo, cumprir um dever seria, com todas as letras, considerado M-A-L.

Como ir tomar banho.
Tenho de ir tomar banho.
Obviamente, tomar banho é mal.
Obviamente, eu vou tomar banho.

Leandro Rafael Ribeiro

[problemas de formatação alheios à minha vontade impediram que esta composição de Ribeiro ficasse conforme a mancha gráfica original. Pelo sucedido, as desculpas, ao poeta e ao leitor]

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