segunda-feira, setembro 04, 2006

#16 Anúncio

Omnipresente, dezasseis.
Um último post para avisar da mudança de link por motivos de experimentação do Blogger Beta. Doravante, o Varanda Amarela encontrar-se-á sobre o link:


Esperemos que gostem da mudança ligeira. Este blogue não será eliminado, não só porque alguns dos posts feitos aqui não foram transferidos para o novo blogue, mas também porque o mesmo sucede, obviamente, com os comentários, que não tenciono perder.
Obrigado a todos os que acompanharam este blogue - vemo-nos no próximo.

quinta-feira, julho 20, 2006

#15 Laconismo Sentimental Diário (LSD) - Um Projecto


Começo hoje, à noite, um pequeno projecto que me ocorreu, esta semana, talvez condenado a falhar - como, de resto, tudo quando faço ou ponho as mãos. Não me expando, porque não me quero. A introdução na página certa diz ao inquisidor a santa sé toda, galileicamente. O link, foi anunciado na coluna ao lado, com os seus conterrâneos.

sábado, julho 15, 2006

#14 Diário de Bordo do Apocalipse §1

I - O 1º FIMBULWINTER

Plagiando mudando Pessoa:
«Vem a Sr.ª Maria de Lurdes Rodrigues... Aquilo é que é uma besta!»

Portugal é governado, foi governado e continuará, sem mudança, sendo governado por uma cambada de incompetentes. Todo o homem de inteligência lúcida e pura afasta-se, no completamente possível, da política impossível. Portugal acabará como país, porque não pode acabar o que já acabou: como cultura. Os homens grandes que aqui nascerem não deverão nada aos que nasceram com eles e serem grandes será independente de serem portugueses.
O ensino português hoje só pode produzir bestas quadradas porque quem o dirige, dirigiu e dirigerá é um bando de cavalgaduras. Todo o português desta geração que não for uma besta quadrada educou-se ou foi educado estrangeiradamente em insulto cuspido ao ensino pátrio praticado. (Graças a Deus que existe Erasmus!)
Declaro, Mr. Keating, que está na altura de rasgarmos esses manuais oficiais e aprendermos poesia! Poucos foram, no colégio, os que entraram no Clube dos Poetas Mortos - esses, contundo, engrandeceram e, o mais alto, racional, partiu, seguro. É esta a rota iluminada de todos os que guardaram os olhos apesar das trevas.
Repito: se alguém há dos nascituros do meu tempo - da stupid generation from 88 (White Lie) - que não é uma besta quadrada, devo-o a ser um pássaro, não há loba (rameira, em latim) que o amamentou animalesca. A vaca, de facto, só faz asneira - marrando cornadas nos exames.
Este é o último sinal do Apocalipse - começou.

O escândalo da aberração dos exames veio confirmar a palavra de todos os queixosos e a incompetência declarada da Ministra, que, elefante branco, arrasa toda a porcelana do lojista - é gordo, feio e cadavérico e não se enterra no cemitério dos da sua espécie por fim. Que se repitam os exames! Que se repitam todos! Que se instale a anarquia nas Universidades e nos concursos! Num país de ministra totalitária, só a máxima libertinagem política e burocrática nos poderá resgata. A Ministra é uma burra! A Ministra é o Anti-Cristo! A Ministra governa!
Só com o fim do Estado pode vir o fim da incompetência estatal.
Agradeçamos o Apocalipse próxima que poremos em mãos nossas.

Almadamente,
...

quarta-feira, junho 28, 2006

#13 Ode To L.A. While Thinking Of Brian Jones, Deceased; de Jim Morrison

I'm a resident of a city
They've just picked me to play
the Prince of Denmark

Poor Ophelia

All those ghosts he never saw

Floating to doom
On an iron candle


Come back, brave warrior
Do the dive
On another channel

Hot buttered pool
Where's Marrakesh
Under the falls

the wild storm
where savages fell out

in late afternoon
monsters of rhythm


You've left your
Nothing
to compete w/

Silence

I hope you went out
Smiling
Like a child
Into the cool remnant
of a dream

The angel man

w/ Serpents competing
for his palms
& fingers
Finally claimed
This benevolent

Soul

Ophelia

Leaves, sodden
in silk


Chlorine
dream
mad stifled
Witness

The diving board, the plunge
The pool


You were a fighter
a damask musky muse


You were the bleached
Sun
for TV afternoon

horned-toads
maverick of a yellow spot


Look now to where it's got

You

in meat heaven
w/ the cannibals
& jews

The gardener

Found
The body, rampant, Floating

Lucky Stiff

What is this green pale stuff
You're made of

Poke holes in the goddess
Skin

Will he Stink

Carried heavenward
Thru the halls

of music

No Chance.

Requiem for a heavy
That smile
That porky satyr's

leer
has leaped upward

into the loam


(A minha homenagem aos 60's, depois de ver o filme Stoned:
Jim Morrison louvando Brian Jones comigo ouvindo Led Zeppelin)

domingo, maio 14, 2006

#12 Despedida Pequena

Esta foi a última tira de Calvin & Hobbes, magnífica série da infância de todos e que, para mim, ainda hoje me preenche os dias, em a relendo na contra-capa de jornais e nos livros por coleccionar. Escolhi-a para celebrar tristemente - passe o paradoxo -, como eles naquele 31 de Dezembro de 1995, a minha partida deste blogue. Não perpétua (ainda há a segunda parte de Prometeu-Lúcifer para partilhar!), mas efémera demasiado. Abandono agora a cibernia para a hibernação sem sonho dos exames nacionais, que me arrancam, violentamente, da minha humanidade. Vou-me tornar um pouco mais animal (por isso digo hibernar) e ser mais menos humano. A coisa pequena, a entrada no blogue, a pétala da margarida rosa, o meu pensamento proto-filosófico, a poesia-problema, a meditação divina do mundo, o desabafo constrangido, a memória querida de um fim-de-semana no campo, uma varanda amarela: isso, que me faz humano, renego hoje para me enterrar nesta bestialidade do sistema em que, involuntário, fui posto, passivamente. Perco tudo, tudo, para me centrar no estudo, muito aplicado!, de todo um saber que sei que vou esquecer daqui a uma dezena de anos, para não dizer por meados de Agosto. Que parvoíce! Há um rei e eu restrinjo-me a bobo - vou agora aplicar os guizos no chapéu. Adeus... e até voltarei, como não cantam os Madredeus.

sexta-feira, maio 12, 2006

#11 Prometeu [em lendo a "Origem da Tragédia"]

Cita Nietzsche Goethe, a sua obra Prometeu:
Sentado aqui, eis que modelo homens
À minha imagem
Uma raça que me seja comparável,
Para sofrer e chorar,
Para gozar e jubilar,
E para não te venerar,
Como eu!
Eis que, em lendo, na aula, estas palavras, tudo, como iluminação, como eu mesmo, prometeu, roubara o fogo que algum deus olímpico escondera, uma série de encadeamentos de conceitos e noções, até à associação final da imagem.
Nestes versos do Poeta, aparece-nos um Promoteu que, primeiramente, se caracteriza pela revolta; segundo, pelo acto demiúrgico; terceiro, a ideia do sofrimento. Ante isto, é impossível não ocorrer à mente, correndo, a ideia de Lucífer-Demiurgo, numa fusão das entedidades Lúcifer (cristã) e Demiurgo (gnóstica). Lúcifer é, pela tradição, o anjo caído, que se revolta contra Deus, que resvala, ele mesmo, para o sofrimento (por isso cria também os seres humanos "para sofrer", "à minha [sua] imagem") derivado da separação de Deus e do Uno Primordial (não se leia o termo nietzschianamente). Em revolta, sugere-nos Goethe, lembrando o Demiurgo platónico-gnóstico, cria os homens: surge a matéria. Note-se, mais aterrador, a semelhança entre Lúcifer, literalmente, o que leva a luz, e Prometeu, que roubou a luz (o fogo). A própria linguagem nos parece claramente indicar uma estranha ligação entre as duas personagens.
Naturalmente, o imaginário cristão jamais poderia comportar a ideia de uma criação não divina, mas diabólica, isto é, que tudo o que existe não tenha sido criado por Deus, como afirma o Génesis. As primeiríssimas heresias cristãs, que afirmavam a matéria como mal, pareciam defender, implicita ou inconscientemente, que, a matéria, enquanto algo de claramente negativo, não podia ter a origem num sre bondoso, Deus, mas num deus menor, num demiurgo, num diabo, que, malvado, criara a matéria malvada. Não existia forma de compatibilizar as ideias, contraditórias, de Deus como criador de tudo e da matéria como algo negativo, mau. Obviamente, para suprir este dilema, o cristianismo ultrapassou esta dialéctica platónica que parece ter sido seu apanágio durante a Idade Média.
Obviamente, aquando do aparecimento da figura de Prometeu na mitologia grega este dualismo platónico estava totalmente ausente, pelo que a criação do homem em matéria (e espírito: recordemos, de novo, que não se falava ainda no maniqueísmo que Platão mais tarde introduziria ao falar de um Hiperurano onde os seres humanos existem somente enquanto almas) não é considerado um acto mau, nem, note-se, ainda sequer um acto de rebaldia. De acordo com o mito, Prometeu e o seu irmão titã criaram os seres vivos (Prometeu somente o Homem, sozinho) sob autorização de Zeus, para povoarem a terra. Nem, sequer, podemos declamar o verso de Goethe "E para te não venerar", já que, diz a tradição mítica helénica, foi Prometeu que ensinou aos homens o dever do sacrifício para com os deuses e das libações que lhes deviam. Sabendo nós que Goethe não era, de forma alguma, um ignorante nestas matérias clássicas, só podemos entender o por ele escrito como uma deliberada tentativa de associação da figura de Prometeu à de Lúcifer, no conceito de um caído e rebelado, e à do Demiurgo, que, porém, aqui, se transfigura.
Esta transfiguração é vital, no entendimento do que aqui tentamos expôr. Se o termo demiurgo contém uma carga negativa latente, um desprezo óbvio, quer por parte de Platão quer por parte dps gnósticos, que dele bebem, ele aqui surge totalmente retransfigurado, no cimo do monte tabor, ladeado do seu elias e do seu moisés: e nós, na sua contemplação, pedros, contruamos três tendas. Aqui o desprizível Demiurgo torna-se no resplendoroso Prometeu. O acto criador do velho Demiurgo, antes ele e o seu acto achados baixos, menores e maus, são agora subidos a toda uma nova categoria quando abandonamos essa terminologia satírica para com eles para falarmos da imagem helénica de Prometeu. Quem olha desprezivelmente para Prometeu? Ele é o deus menor ainda, nem deus é, é titã, o grosseiro titã, comentarão os deus olímpicos dos seus tronos de esmeraldas, mas ele é, a nós, homens, seus filhos, o pai, o criador: ele nos deu plena existência. Não achamos mais um deus menor que emprisionou os nossos espíritos, antes livres no etéreo, na matéria, achamos sim, há semelhança do Deus cristão, um criador que nos cria, pela primeira vez, inteiros, matéria e espírito (anima, em latim, aquilo que anima, ou seja, dá vida, literalmente).
Assim, Goethe opera esse milagre, naqueles versos citados por Nietzsche, de fundir, simultaneamente, as figuras de Lúcifer (no sentido da revolta) e Deus (no sentido da criação), nesse híbrido que é Prometeu. Prometeu, desde o início, elevou os homens à condição de Deus, dando-lhes o saber (do qual o fogo, em última análise, mais não é que, enquanto luz (Iluminismo), uma metáfora), o que incendiu tanto a ira de Zeus. Aqui, vemos, obviamente paralelismos bíblicos, com a Árvore do Conhecimento que Deus proibiu Eva e Adão de comerem. Mas a Serpente-Lúcifer-Prometeu dá a maçã aos homens, trazendo-lhes o conhecimento, o qual, inevitavelmente, traz sofrimento, quer ao tentador, quer aos tentados. É isso que nos diz não só o relato do Génesis, mas também o mito grego, quando, por um lado, Prometeu é agrilhoado no Cáucaso, por outro, Pandora desce à terra com os males do mundo e os liberta, punindo a nossa raça. Uma outra vez, reforça-se a ligação Lúcifer-Prometeu.
Parecemos ter aqui a confirmação da sabedoria profunda de Nietzsche, que escrevia, pouco antes de citar estes versos, "aquele que decifrar o enigma da natureza [...] há-de [...] violar as sagradas leis da moral." ou ainda "lança da sabedoria volta-se contra o sábio: a sabedoria é um crime contra a natureza". Nietzsche desprezaria esta minha interpretação desvirtuada dos seus escritos, mas parece que temos aqui a confirmação de que Diónisos (Uno Primordial) é, de facto, o contrário do Véu de Maya (princípio da individuação), é a perda do "eu", num nirvana quase budista. É, em suma, a incosciência, no sentido de não saber, o estado primitivo (por isso Uno Primordial) de Eva e Adão (em metáfora de todos os homens) até Lúcifer-Prometeu os tentar. (esta é, mais especificamente, a interpretação que Nietzsche reprovaria). É deste Uno Primordial em que tudo é paz, porque inconsciência ("Ignorance is bliss" - Cypher, Matrix) (que é a ingenuidade, a tão louvada ingenuidade, mais do que um não saber?), que Lúcifer-Prometeu quer arrancar os homens. Diz o mito que Zeus não concordava com o que Prometeu fazia aos homens, que ele [Prometeu] via como superiores a todos os restantes animais, achando que os homens deviam ser semelhantes às bestas. A sabedoria surge como uma ofensa aos deuses. Na ignorância se moviam a pré-Pirra e o pré-Deucalião (sem nomes na lenda) até Lúcifer-Prometeu lhes dar a luz (fogo), ele que, é, por Lúcifer, o que leva a luz, por Prometeu, o que vê mais longe. Note-se, na etimologia de Prometeu, o verbo ver: saber é ver, ver implica, enquanto fenómeno físico, necessariamente, a luz. Esta é a sabedoria maior, a de o ver longe, ou profecia. Pela profecia, Prometeu foi salvo: Zeus não podia dispensar saber quem seria aquele que o destronaria: preso ao poder, prendeu à rocha aquele que doutro modo mataria. Prometeu ensinou os homens, diz o mito, a estudar os astros e sabemos como nesse tempo que era o da Antiguidade, astronomia era equivalente de astrologia, e que outro intuito tem esta senão conhecer o que está para vir? Assim, vendo em Prometeu, o sentido da advinhação, vemos nele o Apolo de Nietzsche, até na forma ordenadora que traz ao homem-animal-besta, para o elevar ao patamar civilizado. O Apolo, que Nietzsche tanto critica, torna-se assim, na figura de Prometeu, o salto necessário para superar Diónisos, o estado primitivo e bárbaro.
Se a sabedoria é, como vimos, uma ameça aos deuses, como não o pode ser mais a profecia, o conhecimento do próprio destino? Os seres humanos humanos ameaçavam saber tanto como os deuses, ser tão poderosos como os deuses - e, então, que poder teriam os deuses? Obviamente, entende-se a preocupação destes. Os deuses constituem-se assim como uma espécie que existe apenas em função da conservação e execução do poder. (Um comunista podia ler aqui uma bela metáfora contra o capitalismo - pobres gregos que não sonhavem estes marxistas aproveitamentos!). O que Prometeu vem, proletário revolucionário, fazer é incentivar os homens a rebelarem-se, à semelhança de como ele se rebelou contra Zeus. Rebelado, ele pode ser mais infeliz, mais miserável, porque perdeu a benesse da paz e felicidade primordiais, que só se atingem na inconsciência, no nirvana, mas, em contrapartida, tornou-se livre, e a sua liberdade conquistada, não a cede por nada. Fora da mansão do seu senhor, o escravo não tem o pão que, todos os dias, o mestre lhe assegurava na mesa, não tem a água pura que o dominador lhe servia, mas é livre! E a única coisa pela qual pode ceder a sua liberdade (que antes dissémos não ceder jamais) é pela concessão de liberdade aos outros. Assim se entende que Prometeu, aquele que prevê, porque prevê, sabendo, a priori, do seu castigo, tenha, mesmo assim, roubado o fogo: a única coisa pela qual a liberdade é passível de ser cedida é pela própria liberdade. E, pelo fogo, Prometeu concretizou a libertação dos humanos dos deuses. Prometeu, foi, num certo sentido, o primeiro anarquista. Dizia Bakunine que "Se Deus existisse realmente, seria necessário fazê-lo desaparecer". Prometeu e Bakunine partilham a visão de um Deus que apenas procura preservar o seu poder (o que, implica, necessariamente, alguém que se submeta a esse mesmo poder e pelo qual esse poder se possa exprimir, em lhe [ao poder] obedecendo). Ante esta escravatura, os dois apelam à libertação do homem. Lúcifer, esse, procura libertar o ser humano da prisão da sua ignorância, que é inclusive a ignorância da sua prisão.
Algo, porém, ao leitor atento, parece falhar neste edifício. E, ai!, que até a mim me intrigava! Mas, como quando se escreve, tudo se desentreva, assim, em quanto me explanava em buscas de sentidos, achei-o. Sim, certo, o mito é claro nesse aspecto: depois de roubar o fogo do Olimpo, do carro de Hélio, Prometeu aconselhou os homens, que faziam fogueiras para aquecerem os alimentos e os corpos, a, para aplacar a ira de Zeus que ele previa, que lhe oferecessem um sacríficio (aqui a introdução do sacrifício, antes mencionada e atribuída ao titã). Para isso, matou-se um boi. Mas, eis companheiros, "brothers, your humble narrator" acercou-se da lenda e entendeu, enfim, o seu pormenor que não deslindava. Concentremo-nos no futuro do boi. Prometeu didiviu os restos do boi em duas partes, que envolveu em pele. A porção maior continha apenas gordura e ossos; a mais pequena repletava-se de boa carne. (há outras versões do mito, que o narram diferentemente, mas, tratam-se de matérias de pormenores ou divergências que, na medida das várias versões por nós conhecidas, em nada afectam as conclusões tiradas antes). Prometeu, ante Zeus, disse ter reservado a menor para os deuses, mas o pai do Olimpo indignou-se. Matreiro, como um Loki nórdico, Prometeu deixou, com um sorriso, Zeus escolher que porção queria e, obviamente, o guloso escolheu a maior - só para perceber como fora ludibriado. Note-se, pois, que Prometeu tudo isto fez para enganar os deuses - há aqui um sarcasmo, um desprezo. Ele introduziu o sacrifício, concordo: mas com o único intuito de ridicularizar Zeus. Por isso, o próprio sacrifício, na forma em que Prometeu o introduz, tornar-se um acto de revolta contra os deuses, não de subserviência. Goethe escrevia bem quando nos deixou o verso "E para te não venerar, /Como eu!".
Uma última questão prende-se com a criação dos seres humanos por Prometeu-Lucífer, apenas aflorada anteriormente. Lúcifer é aqui equiparado ao Demiurgo gnóstico só no sentido em que, não sendo Deus Deus, é um criador também. Segundo um os Três Livros de Enoque, bisavô de Moisés, (estes livros, não pertencendo ao cânon, foram citados e reconhecidos como inspirados por vários Pais da Igreja), Deus escolhera um grupo de anjos específicos (os quais, posteriormente, cairiam) para auxiliar na construção do Éden. A narrativa descreve como se apaixonaram pelas mulheres e lhes geraram prole, razão pela qual, segundo o autor teriam sido expulsos. Esta visão que muitos tardariam a qualificar de apócrifa está, na realidade, bastante bem documentada no Génesis. Passamos a citar o início do sexto capítulo do primeiro do Pentateuco: "Quando a humanidade começou a ser mais numerosa na terra e foram nascendo mais raparigas, os seres celestes viram que estas eram belas e cada um deles escolheu para sua mulher aquela que mais lhe agradou. [...] Havia então na terra os gigantes e continuaram depois a existir. E que os seres celestes tinham casado com as filhas dos homens e tinham gerado filhos. Foram estes os famosos heróis dos tempos antigos." (Gn, 6, 1-4). Porém, pois nos interessa especificamente este relato e só o transcrevi para maior credibilidade dar aos Três Livros de Enoque. O que estes nos revelam de importante é a intervenção directa dos anjos na criação do mundo. O texto, obviamente, não assume a possibilidade que não tenha sido Deus a criar a raça humana, mas involve directamente os caídos na feitura do mundo. Também Prometeu, como referido, cria os homens sob ordens de Zeus (ainda que este solicitasse apenas criaturas, sem especificar, para popular a terra). Se estamos perante um anjo-titã que se revolta contra a autoridade, como entender este acatamento de ordens da mesma autoridade? A tradição (do mito e do cristianismo) remete, frequentemente, a queda para depois da criação do ser humano, pelo que, sem embargo, podemos reconhecer Prometeu coerente, o mesmo Prometeu que, anteriormente, se associara mesmo a Zeus para destronar os outros titãs. Contudo, se tudo isto aqui explanamos, é numa tentativa de remeter sentido ao verso "eis que modelo homens", na tentativa de ligar mais prontamente Prometeu e Lúcifer. Para tal, tínhamos antes feito equivaler Lúcifer, na coisa de criar, ao Demiurgo gnóstico. Porém, a ligação das duas imagens que fazemos é relativamente vaga, pelo que seria mais acertado o associarmos ao binómio gnóstico Sophia/Demiurgo, que sabemos [este último] ser uma emanação de Sophia, a qual, por sua vez, era a emanação mais fraca de Deus. Lúcifer comporta esta dupla divindade: é Sophia enquanto portador de sabedoria, e é Demiurgo enquanto criador do mundo. Porém, não nos coibimos de concordar que é forçado unir, neste ponto específico, as imagens de Prometeu e Lúcifer, se não concedermos em não aceitar a versão de Goethe e do mito na sua versão mais conhecida, de que Prometeu criou, de facto, os seres humanos. Porém, ainda que este assunto seja portador de grande relevância, se aqui o tratamos foi por razões de honestidade e clarificação. Ele, na teologia nova do saber que aqui abordamos, no âmbito só em que Nietzsche a usa, mantém, independentemente da sua resolução correcta, inalteráveis e válidas as assumpções anteriormente feitas em matéria de conhecimento (fogo/luz) trazido pelo Prometeu-Lúcifer.
Estamos aptos a sintetizar então toda uma teologia alternativa: no começo, era o que chamámos de Uno Primordial: um descanso pacífico infinito de Deus/Zeus e das Suas criações. Nele, uma dessas criações (Prometeu-Lúcifer) revolta-se, ao despertar desse Uno Primordial, entendendo, enquanto criação, o seu estado de submissão ao poder instituído (Deus/Zeus). [?Cria as suas próprias criaturas: e, nesse, e apenas nesse, sentido de que cria sem que que seja a Entidade Máxima, é demiurgo.?] Aos homens ensina. Os deuses (Deus/Zeus) reagem negativamente à escalada de conhecimentos das criaturas que antes, no Uno Primordial, porque ignorantes, se lhes submetiam, sendo felizes. Com o conhecimento dissolve-se a ignorância, com ela a subserviência. Os homens escalam ao estatuto de deuses e dispensam-nos, gozando das libações que lhes prestam. Como castigo, o seu libertador (Prometeu-Lúcifer) é condenado, bem como eles mesmos. Os poderes (Deus/Zeus) surgem, pois, como vingativos, sendentos de poder, e Prometeu-Lúcifer como o salvador da Liberdade pela Sabedoria: a gnose, com a ascenção à condição igual dos deuses, e a queda necessária de belerofonte que isso implica.

Gustave Doré, Representação de Satanás
de Paradise Lost de John Milton

"He falleth like Lucifer, Ne'er to ascend again.."
And When He Falleth, Theatre Of Tragedy

Próximo: Prometeu-Lúcifer e A Queda Cristã (junto: A Ainulindalë de Tolkien)

quarta-feira, maio 03, 2006

#10 Poema Escrito em Tempo Real, de Leandro Rafael Ribeiro

Devia:
1. estar a estudar para os exames
2. estar a estudar para os próximos testes
3. estar a trabalhar no jornal da escola
4. estar a dever qualquer coisa que nem importa bem o que seja, desde que se deva
Devia...
E sei que, em breve, estarei, concordantemente
conscientemente
responsavelmente fazendo o que devo.
Porque eu, oh eu!, sou muito responsável,
extremamente responsável
magnanimamente responsável.
Quando era pequeno e bebi os refrescos por uma palhinha só para ouvir aquele barulho giro de que, em garoto, se gosta do líquido a surripar-se pelo cano exíguo do instrumento, nessa altura (em que eu também era diferente noutras coisas do que sou hoje: por exemplo, gostava de ficar sentado em frente à máquina de lavar loiça a ouvi-la, velha, rabujar com um neto que não tinha), nesse tempo eu responsabilizei-me de ficar sempre responsável.
Eu sou muito responsável.

Por isso é que até estou a escrever este poema.
Porque é uma grande responsabilidade ter um sítio na net
Porque há indivíduos (que eu não conheço) que vêm cá ler tudo o que digo.
Tudinho, tudinho, tudinho! Eles também são muito responsáveis em, com regularidade, ler.

Ah! Rai's parta a responsabilidade! Rai's parta o dever!
Sinto um gosto agreste (como se tivesse mastigado uma urze digerida com pedras pequenas que as cabras engolem enganadamente quando pastam) de ter vindo do teatro.
Não entendo (oh, claro que entendo! Só que entendo por bem que não devo entender) porque sucede deste modo, exótico.
Os meus colegas de palco estavam todos muito contentes. Eu devia estar contente?
(Digam-me: se eu devia, eu torno-me já contente! Não esteja procedendo contra a moral social!)

Sinto que falhei, redondamente,
quadrangularmente,
paralelepipedicamente,
triangulamente, tudo o que era simples e me pediam que fizesse.
Na realidade, fiz tudo o que era simples e me pediam que fizesse.
Se ao menos percebesse o absurdo do que está mal nisto!

Teatro. Te-a-tro.
(Eu devia...)
Odeio o teatro, porque nele revejo, lucidamente, a minha hipocrisia.
(Hipocrisia vem do grego e etimologicamente liga-se a actor. Eu sou culto. Disseram-me que convinha [não devia no sentido estrito do termo, mas convinha muito, muito, que é como quem diz que devia, só que num eufemismo])
Actor, entendo que sou só, nietzscheanamente, aparência da aparência.
Não é um ser real que, fingido, imita um imaginário (isso é o que faz toda a gente normal e o que é normal é sempre o que devia ser: raios que falho no dever!)
Mas eu, imaginado eu mesmo, que copio uma realidade que, só por uma mero fortuito acaso, não acontece (mas só porque, olha, aconteceu assim) não ser eu.
E o que eu sou, não é eu - é outra coisa qualquer, outra hipocrisia.

Quando conjugo verbo ser, nunca digo a primeira pessoa do singular.

Sou.
Tu és.
Ele é.
Nós somos.
Vós sois.
Ele são.

Mas, insisto, nunca tentem subentender qualquer sujeito.
De tudo, recebe, apenas, o que, aberto, te oferecem, claro.

O que sou não concorda com o meu eu.
(Por isso não os juntem!)
O que eu sou é uma coisa qualquer, esquisita, da qual não tenho bem a certeza, só podendo afirmar com a que não tenho que eu não é de modo nenhum
jamais
impossivelmente o que sou.
Eu lá hei-de ser qualquer coisa quando digo sou, eu é que não sou!
Só tudo o que quiserem, só não sou eu!
Mania das pessoas de teimarem na mentira!

Eu sei que isto está tudo mal:
Que eu devia ser um eu facilmente identificável, mas que querem? se eu fosse eu, dizia a mim mesmo, muito severo, com um Salazar com bigode «Sê eu!» e pronto! era eu!
Mas não sou! Sou o Salgueiro Maia!
Que grand'a baralhada...!
E o pior, é não ser carta nenhuma do baralho, mas ser o baralho, uma substância que em si, por si, não existe, mas é tão somente a combinação de muitas substâncias que, em si, por si, existem.

Ora descobri: eu não existo!
Declaro a verdade infalível da minha não-existência, total
completa
irrevogável!
Eu não existo!
Penso, mas não existo (e agora eu rio-me, rio-me, rio-me [como uma vaca gorda que rola pela colina a abaixo a rir-se muito, a rir-se muito, a rir-se muito] do Descartes! Palerma do Descartes! Com esta, já morto, é que ele não contava!)

O mais engraçado em não existir é que, no fundo, eu existo em todas as coisas, só porque estou em todo o lado, obviamente, não existo.
Sou como Deus.

Isto dá-me um gozo danado!
Vocês nem sabem o gozo danado que isto me está a dar!
Mas que gozo danado!
É mesmo um gozo danado!

(agora aqui eu volto-me a rir muito, muito, muito)

Isto de não existir é divertidíssimo.
A minha mãe já me chamou «Ó Leandro, vem tomar o banho!»
Mas eu não existo, por isso não posso tomar banho! Eh eh eh eh eh!
Isto é divertidíssimo, íssimo, íssimo! (Álvaro!)

Amanhã também não vou à escola: não existo!
Vai ser um espanto para os professores: «O Leandro não existe! Que coisa lhe havia de acontecer!»
(Falarão de mim como alguém que teve um acidente, sofreu um atropelo muito chato, e foi para o hospital - não que esteja em estado grave, mas lá tem de ficar uns dias e teve de levar pontos, que coisa aborrecida!)
Os meuas amigos, esses, espertos
raposos, vão comentar «Pronto, aí está! Eu sempre disse que, dia sim dia não, ele deixava de existir! Era inevitável! E pronto, agora lá está ele: inexistente!»
Os meus pais vai ser um pouco mais complicado, o caso, mas calculo que acabarão por achar confortável a minha inexistência, como um colchão japonês, daqueles duros, que, quando não os conhecemos, a gente não quer dormir lá, mas dizem-nos que é muito saudável para a vértebra e nós vamos na lengalenga e lá dormimos, muito mal, muito mal, diga-se de passagem, mas dormimos, só para fazer vontade ao dono da casa.

Isto realmente de não existir é brutalmente divertido!
De facto, deve ser por isso que o Buda se está sempre a rir.
Nunca vi uma estátua do Buda em que ele não se estivesse, como um avô careca, a rir, como se achasse muita graça àquilo tudo (não acha nada, mas pronto).
Agora eu, eu acho uma graça diabólica a isto tudo!
A estar sempre a repetir a palavra graça
graça
graça
graça
graça
graça
graça
Só para constatar como, quando escrita verticalmente em série, dá a impressão que a fila está torta!
Isto é realmente divertidíssimo! Nunca me diverti tanto na vida, nem quando , tu lembras-te?, eu ia a fazer qualquer coisa e aconteceu aquilo - foi tão engraçado! Embalo essa memória indistinta com todo o carinho dos marsupiais do mundo.

Quando eu for grande vou ser um koala, para estar sempre a dormir, a dormir pendurado de um ramo de uma árvore.
Porque dormir é a coisa mais parecida com a não-existência: aconselho vivamente toda a gente a dormir - se for tão divertido como é não existir!
Eu não sei como é dormir. Nunca dormi: tenho sempre insónias.
Insónias pelo remorso de um crime que não cometi
por aquela situação embaraçosa que nem me aconteceu
por aquela palavra que eu podia ter dito tão oportunamente, e não disse.

O meu pior é Inferno é a lembrança de todo o Bem que não fiz.
O pior, é fazerem equivaler sempre o dever ao bem.
Num mundo justo, cumprir um dever seria, com todas as letras, considerado M-A-L.

Como ir tomar banho.
Tenho de ir tomar banho.
Obviamente, tomar banho é mal.
Obviamente, eu vou tomar banho.

Leandro Rafael Ribeiro

[problemas de formatação alheios à minha vontade impediram que esta composição de Ribeiro ficasse conforme a mancha gráfica original. Pelo sucedido, as desculpas, ao poeta e ao leitor]

quarta-feira, abril 12, 2006

#9 O Operário em Construção

Presenteio-vos com a genial declamação de Mário Viegas do não menos forte poema de Vinicius, extraído do EP homónimo, O Operário em Construção e 3 Poemas de Brecht (1975). A T. emprestou-me, ' semana antiga, um duplo CD de poesia de Vinicus, cantada pelos ritmos afro-brasileiros da bossa-nova. Ela comprara o disco pela paixão que tem por aquelas cálidas melodias vivas, que só podiam mesmo ter sido inventadas numa praia brasileira. Posso dizer que, antes, nunca ouvira música brasileira, porque trautear Tribalistas ou ver o pai a ouvir Maria Bethania não pode, na acepção mais aceite da palavra, ser considerado válido para aquilo em questão. Foi um prazer natural aquele andamento dançável de Tom Jobim num' A Rapariga do Ipanema. Há beleza e tristeza no samba, como Vinicius ajustadamente exigia que houvesse. Na realidade, a verdadeira beleza é sempre triste; sabemos que é bela, porque é triste. O poeta, ante o que é belo, inevitavelmente, chora - não pode deixar de o fazer. É a súbita consciência da efemeridade de tudo o que se apresenta na proporção e harmonia da alma estética que carpe o homem. Perceber que toda a mulher bonita, há-de morrer - e, em última análise, que a todos nós chegará o dia em que os olhos se fecharão para as coisas belas. Se a beleza é algo de divino, então a beleza é, por maioria de razão, triste, porque Deus tem de ser obviamente Alguém profundamente infeliz. Na realidade, o poeta e o filósofo - ainda que movidos por dois instintos carnivoramente diferentes: sentimento e pensamento - estão ambos condenados a ser, na sua essência, misteriosamente próximos. Resumindo, ambos almejam alcançar a alquimia do mundo - não para a dominarem: a esses chamam-se políticos e demagogos - mas tão somente para a compreenderem. Bem vistas as coisas, o poeta quer tanto como o filósofo saber o mistério do mundo, apenas não se esforça muito para isso, porque, em descoberto o mistério, que resta para que nos espantemos e se escreva versos? O poeta quer - mas o poeta é budista. E anula o desejo. Não o elimina - somente o não concretiza. Ama, por exemplo, mas nunca, de forma efectiva, se lança à rapariga. Na realidade, ele perserva o desejo, pois não se pode desejar o que se tem. O poeta é um desejador, arde-lhe, nietzschianamente, a vontade - mas ele tem o cuidado de a preservar como um animal numa jaula de zoo. Por isso, na época de ouro da poesia como vida - o Romantismo - inevitavelmente a filosofia desse tempo tinha por arauto os profetas da Vontade: Zaratustra e Schopenhauer. O poeta é um desejador. E, depois, há os que desejam ser poetas...

quinta-feira, abril 06, 2006

#8 Saturno Devorando o Seu Filho, de Goya

Férias nomáticas! Tanta coisa para fazer sem ser que quer que se faça! Tanto encargo deixado para o último tempo, para o Tempo (porque só é Tempo, assim escrito, com maiúscula, aquele que é livre). Na verdade, estar a escrever aqui é uma forma de libertação. Tenho uma lista pendurada no placar com 27 pontos a cumprir e, finda uma semana de férias, ainda só risquei um. Tanta parvoíce que acumulamos! No fundo, estou, como dizia Álvaro de Campos, cansadíssimo íssimo íssimo íssimo... Saturno, Cronos, Tempo!: pára de devorar os teus filhos!

segunda-feira, abril 03, 2006

#7 Memória

Erguer um concerto é pesado, mas as coisas pesadas são também as mais ricas - porque muito, carregadas. Montar todo um espectáculo exige um involvimento profundo, uma dedicação de oferta, uma dádiva gratuita para quem assistirá. Erguer andaimes, desenrolar panos, varrer carpetes, ligar cabos, testar som, dispor, conveniente, a iluminação: tudo isso, hercúleo, se junta para fabricar, amálgama de alquimista, uma pedra filosofal de um concerto. Mas quando a obra nasce, esquece-se a mãe. E quantos não admiraram a criança!
Os ExploGen (www.explogenforum.web.pt) conseguiram mais uma vez levar a sua mensagem. Mas só se leva o que se vive - e foi uma prova de unidade toda a preparação deste espectáculo: e uma prova bem superada. As novas músicas envolveram todos, nomeadamente o finalíssimo e incrível - quem sabe, a melhor música de sempre até ao presente (estranho sempre que se resume a uma coisa que quando se afirma já é passada, pois quando digo presente, o que disse é sempre - num sempre este correcto - já passado)? - Happy Ever After. Obrigado: Luis, Adrian, Jota, Teclas!
* * *
Três dias passados no campo. O mundo devia ser um campo grande - a cidade constituiu-se, inevitavelmente, como um retrocesso humano. No ermo de uma grande floresta, corria a cadela e o cãozinho pequenino atrás dela, por entre o laranjal e a erva verde orvalhada. Uma cerca separava duas propriedades. Um nevoeiro de trunda mediterrânea assolava o local. Um sol bocejava em intermitências de claridade. E, constantemente, como fundo, os pássaros, chilreando. Quem ali estava era outro eu, ou o meu outro eu ficou cá quando para lá parti. Ali, não havia responsabilidade senão o presente e o instante imediato e próximo. Trabalhei como poucas vezes trabalhei na vida: o meu trabalho tinha um sentido. Era constante, com a regularidade de um relógio, mas com toda a vontade e energia que faltam à máquina: e por isso o meu labor era humano - porque querido. E, porque assim, vigoroso, com a convicção com que se afirma, em credo, a filosofia de existência. Aquela terra merece bem o epíteto de centro do mundo: ali reside o que o homem, primitivamente, foi - ligado, umbigo, cordão umbilical, à Terra Mãe, ao Irmão Homem, ao Pai Céu.

sexta-feira, março 24, 2006

#6 Terceiro/O Conde D. Henrique [em estudando a "Mensagem"]

TERCEIRO / O CONDE D. HENRIOUE

Todo começo é involuntário.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.

À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
«Que farei eu com esta espada?»

Ergueste-a, e fez-se.

Fernando Pessoa

quinta-feira, março 23, 2006

#5 Odessa: Homem, Vê!

Jana, 13 anos, moldava, fotografada em Odessa, Leste da Ucrânia. O pai morreu ainda nova, a mãe na cadeia, ela na droga. Três meses depois da objectiva de David Gillanders a capturar, faleceu, com SIDA, na barraca onde vivia. Viver? Choro de sarcasmo e rio de engasgo de soco mal digerido na faringe! Viver? Deus, Homem: viver! E eu tenho um computador à frente, e oiço música, e estou sentado numa cadeira, numa casa com tecto, com bolachas lá em baixo para comer agora antes de ir dormir numa cama com colchão e lençol num quarto com aquecimento central. Eu tenho demais - só pode ser. O que ando a fazer ao dinheiro, essa peste vive e lazarenta do mundo? Como posso sequer ousar ser feliz? Calculo que, coração grande, tenha compaixão dos povos, e me ocupe mais a felicidade alheia que a própria. Mas ai!, quão hipócrita é o meu sentimento! Pois ainda não só melhor do que aqueles do Hotel Rwanda, que, ante o genocídio, ao jantar, pela tevê, comentam, pondo o garfo na boca, a situação triste e exclama «Pobres deles!», mas prosseguem, pacíficos, a sua comida - para logo a seguir verem um talk-show. Deus, quem sou eu para ser tão insensível? Tenho de acreditar, insanamente, que posso mudar o mundo - ou tudo não passa duma peça disparatadamente encenada: não posso ser tão impotente como um cão preso à casota da sua condição pela corrente da sua restrita humanidade. Raios! Não, não me digam que eu me surdo!, não me digam que eu não posso acabar com a miséria de tantas mais Janas e limpar tantas mais Ucrânias! Se não acreditar na utopia, ela não terá tópos jamais! É o desistirmos sem acreditarmso que dana o nosso mundo e nos dana a nós em vidas rotineiras sem sentido que se lhes encontre ou ache, nem que procuremos debaixo do tapete da pele superficial - tudo é superficial na nossa sociedade! - dos trabalhadores de colarinhos brancos! Jana, Jana, deixa-me salvar-te!, salvo, primeiro, de mim mesmo, eu próprio...
(Foto Vencedora do Concurso de Fotografia da UNICEF, Edição 2006)

domingo, março 19, 2006

#4 Sylvia e "Daddy" [num dia do pai]

Passou ontem na 2: o filme Sylvia, com Gwyneth Paltrow no papel de Sylvia Plath e Daniel Craig (o Bond-para-ser) como Edward Hughes, o marido da poetisa, ele mesmo poeta também. Quando o filme saiu, em 2003, fiquei com curiosidade em vê-lo, mas esta foi só mais uma das películas que estão uma semana num cinema de esquina em Lisboa e decapitadas são na capital - esquecidas ao resto de Portugal. Nunca ouvi falar de uma saída em DVD. Foi, por isso, com boas perspectivas que me sentei no sofá para, noite adentro, seguir a conturbada relação dos dois protagonistas.
Paltrow oferece uma interpretação poderosa, com uma maleabilidade de rosto impressionante: não raro a câmara pára nele, porque ela detém o dom de concentrar, nas rugas, nas expressões, na fronte, nos olhos, todo o sentimento de angústia de Sylvia. As frequentes cenas, sem palavra, em que, esperando pelo marido, Sylvia, num quarto escuro, numa fotografia impressionante em matizes azuis-escuras, sozinha, sofre, sugam-nos para o interior daquele espírito que teve o fado de ser infeliz. Craig também desempenha com primor o seu papel, mas é, face a Gwyneth, secundário - ainda que essencial, como motor da acção.
A impressionante vida de Sylvia, na forma como tenta conciliar família, poesia e carreira profissional, perturba. Com uma grave doença mental (esteve internada na sua adolescência, apesar de isso não ser mostrado no filme - faz recordar, quiçá, a situação da neo-zelandesa, poetisa igualmente, Janet Frame, mostrada em Um Anjo À Minha Mesa), com o trauma da morte prematura do pai (tinha ela oito anos), amando incrivelmente o marido como poucas mulheres há que o tenham feito, acabou por, César!, se ver traída pelo Brutus!: Edward! Teve, ainda assim, dois filhos, mas o adultério do esposo levou à inevitável solitária separação - que nunca mais reatará laços, como um embrulho de prenda rasgado: mas o presente, era a morte.
Como ela começa no seu poema Lady Lazarus: «I have done it again./One year in every ten», assim, depois de se ter tentado suicidar com dez anos, repetido, fracassando, a morte aos vinte, por fim, com trinta anos, num dia 11 de Fevereiro de 1963, pôs um término à sua vida, de uma das formas mais inéditas de suicídio. Os preparativos, a morte e o após são particularmente tocantes e bem conseguidos, em grande parte pela banda sonora, de qualidade magna ao longo de toda a fita - e verdadeiramente recomendável, sabendo transferir da tela para quem vê toda a tristeza de um dia de Outono/Inverno que foi a vida de Sylvia.
Um dos pormenores mais deliciosos do filme é a simbologia da árvore inicial e da final, como só após a morte, Primavera. Mais que não fosse, despertei para esta nova poetisa e as suas composições, que me estão, do pouco que, para já, pude ler, a cativar, como raposa o Princepezinho. Aos que têm a bíblia da poesia, Rosa do Mundo - 2001 Poemas Para O Futuro, vão à página 1716 e podem provar, com um dedo maroto, a nata do bolo de casamento. Abaixo, um dos que figuram no filme, um dos mais conhecidos dela e, estranhamente, com um título apropriado à circunstância - e a aparência ilude.

Daddy

You do not do, you do not do
Any more, black shoe
In which I have lived like a foot
For thirty years, poor and white,
Barely daring to breathe or Achoo.

Daddy, I have had to kill you.
You died before I had time--
Marble-heavy, a bag full of God,

Ghastly statue with one gray toe
Big as a Frisco seal


And a head in the freakish Atlantic
Where it pours bean green over blue
In the waters off beautiful Nauset.
I used to pray to recover you.
Ach, du.

In the German tongue, in the Polish town
Scraped flat by the roller

Of wars, wars, wars.
But the name of the town is common.
My Polock friend

Says there are a dozen or two.

So I never could tell where you
Put your foot, your root,
I never could talk to you.
The tongue stuck in my jaw.


It stuck in a barb wire snare.
Ich, ich, ich, ich,
I could hardly speak.
I thought every German was you.
And the language obscene

An engine, an engine

Chuffing me off like a Jew.
A Jew to Dachau, Auschwitz, Belsen.
I began to talk like a Jew.
I think I may well be a Jew.


The snows of the Tyrol, the clear beer of Vienna

Are not very pure or true.
With my gipsy ancestress and my weird luck
And my Taroc pack and my Taroc pack

I may be a bit of a Jew.

I have always been scared of you,
With your Luftwaffe, your gobbledygoo.
And your neat mustache
And your Aryan eye, bright blue.
Panzer-man, panzer-man, O You--


Not God but a swastika
So black no sky could squeak through.
Every woman adores a Fascist,

The boot in the face, the brute
Brute heart of a brute like you.

You stand at the blackboard, daddy,
In the picture I have of you,

A cleft in your chin instead of your foot
But no less a devil for that, no not

Any less the black man who

Bit my pretty red heart in two.
I was ten when they buried you.
At twenty I tried to die
And get back, back, back to you.
I thought even the bones would do.

But they pulled me out of the sack,
And they stuck me together with glue.

And then I knew what to do.
I made a model of you,
A man in black with a Meinkampf look


And a love of the rack and the screw.
And I said I do, I do.
So daddy, I'm finally through.
The black telephone's off at the root,
The voices just can't worm through.


If I've killed one man, I've killed two--
The vampire who said he was you
And drank my blood for a year,

Seven years, if you want to know.
Daddy, you can lie back now.

There's a stake in your fat black heart
And the villagers never liked you.
They are dancing and stamping on you.
They always knew it was you.
Daddy, daddy, you bastard, I'm through.


12 October 1962


«Even amidst fierce flames the golden lotus can be planted.»
(Epitáfio de Plath)

sábado, março 18, 2006

#3 Despertares ou O Rapaz das Laranjas

Ontem à noite, com um grupo de amigos, tive a oportunidade de, caseiramente, na casa de um, ver o filme Awakenings, em português, acertadamente traduzido (coisa raríssima!) por Despertares, nomeado para três óscares, entre eles o de Melhor Filme e Melhor Actor (Robert De Niro), no ano de 1990.
O filme narra a história do Dr. Sayer (Robin Williams) que, em chegado a um hospital de doenças crónicas, em vez de se conformar com a situação inumana dos pacientes, crente de que há vidas naquelas verdadeiras estátuas paralisadas que são os doentes, começa a investigar os seus casos, apaixonando-se pelo de Leonard Lowe (De Niro), que Sayer consegue despertar através de uma nova droga, reservada a doentes de Parkinson. Porém, «tudo tem a efemeridade de um arco-íris!», como escrevia Ribeiro - e, assim, o drama.
Chorei - chovia nesse dia: fora e em mim entristecia. Despertares é dos mais comoventes filmes que alguma vez vi, em grande medida pela assustadora interpretação de De Niro. É um filme terrível, tanto mais quando pensamos que se inspira num caso real - e, ai quão certo!, é tão mais perto da imaginação a realidade!
No fundo, citando o filme, num diálogo final entre Sayer e Eleanor:
- How kind is it to give life, only to take it away?
- It's given to and taken away from all of us.
Este comentário recordou-me A Rapariga das Laranjas de Gaarder, que, na sua habitual trama filosófica, nos indagava exactamente sobre esta problemática, alargada ao contexto da nossa própria vida. O livro narrava a história de um rapaz que descobre uma carta do pai - morrido há muito, na sua infância - escrita para ele, para a ler quando fosse mais velho. A pergunta derradeira com que o pai o liberta é se, de facto, valeu a pena tê-lo posto nesta vida, que ele comparava à Sonata ao Luar de Beethoven: o primeiro andamento (a não-existência), tenebroso e soturno; o segundo andamento (a vida), curto e alegre; o terceiro (a morte), fulminante, raivoso e rápido. Efectivamente, Despertares é só uma metáfora profunda da nossa própria existência, que é, também ela um despertar, efémero somente.
Leonard queixava-se, a um dado momento do filme, da pouca importância que as pessoas dão à sua vida, de como a desperdiçam em futilidades, sem dela saborearem o essencial - «the simplest things», essa sua confissão desesperada. É natural que, tal John do Admirável Mundo Novo, também ele, a um certo momento da história, se revolte contra aquela sociedade - ela sim, paralisada, doente crónica de uma maladia sem diagnóstico senão o dos loucos e dos manicómios.
Dar esperança («Hope, it is the quintessential human delusion, simultaneously the source of your greatest strength, and your greatest weakness.», nessa magnífica definição do Arquitecto no segundo Matrix) para logo a seguir a tirar - será crueldade?, sadismo? Mas e não a dar de todo? E não é a esperança a benção de Pandora, a vozinha fina e frágil, como uma ânfora que se pode partir só porque vai, varina, na cabeça de uma menina; essa voz que, no fundo da caixa de Pandora, depois de libertados todos os males, requesitou autorização para sair, ela também, para abundantemente - ainda que falsamente, quiçá - consolar os homens? Saber que perderemos tudo, que nada ficará porque «És pó e em pó te transformarás», que, em última análise, o Universo se encarregará de extinguir a nossa raça...
«Quando é que despertarei de estar acordado?» (Pessoa, Magnificat)

segunda-feira, março 13, 2006

#2 Penélopes

Sem nome decente para a intervenção, fiz o que sempre faço nestas ocasiõe: vou à velha grega mitologia requisitar um nome que, de alguma forma, possa interligar com o que escrevo. Sem plano definido para este rascunho, via, quando o projectava mentalmente concluído, nele um entrelaçar de temas que, invariavelmente, me recordou a teia e o tear - e, com elas, Pénelope.
* * *
Ontem, quiseram forçar-me a fazer a barba. Símbolo viril por excelência, não que a me por isso, mas porque me sinto nu sem ela, rente ou desenvolta esteja. Face à minha oposição ao apelo que me fizeram para a limpar (se algo a limpar há numa mera cobertura parca que nem uma semana tem e só acinzenta o rosto), disseram-me que não arranjasse confusões e que contribuísse para um bom ambiente, não irritando os outros. Estranho que a vontade a ceder seja, invariavelmente, a nossa, que nunca sejam os outros a tentarem não irritar-me (se eu me irritasse, coisa que já não pratico, de tão supérfluo que é). Invariavelmente também, as pessoas não sabem inverter o ângulo e foco dos seus argumentos: se o fizessem, talvez me deixassem a barba solta, e, em vez de pedirem a que outros cedam a vontade, cedessem eles a sua. De qualquer das formas, não fiz a dita cuja. Quem souber ler metáforas e hipónimos, que os leia.

* * *
Acabei de ver o início do concerto, em 1970, dos Led Zeppelin no Royal Albert Hall. Só vi as duas primeiras músicas, mas tenho de destacar a "I Can't Quit You Baby". Ainda que se tenha vindo a descobrir que esta música do CD de estreia era um cover de outro artista, a música foi de tal forma alterada e é tão magistralmente trabalhada pela banda que perdeu a sua autoria original, para passar a ser, na acepção plena, uma outra obra-prima dos Led Zeppelin. Magnífico o espectáculo, os impressionantes solos de guitarra do Jimmy Page nesta rock-blues. E, ainda que curto, o solo do baterista Bonham marca igualmente, ainda que todo o acompanhamento ao longo da música não nos permita, jamais, esquecê-lo, com a sua batida poderosa, lembrando aquele verso de Álvaro de Campos "À dolorosa luz das grandes lâmpadas [...] Tenho febre e toco bateria", seja-nos permitido emendar, pois é, de facto, fervilhante a energia que ele transparece . Fenomenal - e perdoem-me a escassez de palavras, mas elas não existem face à grandiosidade, quase de Alexandre, da composição.

sábado, março 11, 2006

#1 A Varanda Amarela: Introdução

Não pude - luta vã! - resistir à tentação de fabricar mais um blogue, olvidando o número excessivo dos que já construí, para os quais, em olhando, os visitantes vêem ruínas - quando nunca houve nada lá para que ruísse: são tão somente construções inacabadas. Porém, por muitos alicerces postos, nunca me dispûs ao que me disponho agora: um blogue no sentido original e imaculado do termo, onde, tão somente, sem preocupação, escreva, pouco ou muito, um pormenor qualquer que me chamou a atenção, os prelúdios de uma revolução ou as tristezas de um quotidiano mal fervido.
Estou a assumir muitos compromissos comigo mesmo: manter uma postagem ritmada, ainda que não periódica; conseguir minimamente não ser espantalho do meu próprio público por causa de artigos monótonos; não pensar muito no que escrevo aqui, apenas, inconsciente, escrever, como os dedos assim deslizarem pelo teclado - ininterruptos. Falar do que me ocorre - se algum valor tem, que sei que não.
A Varanda Amarela - porquê? Escrevo as primeiras linhas deste blogue da Universidade de Direito de Coimbra, do gabinete do meu pai. À minha frente, está uma janela, e, por de trás da janela, que a transparência revela, uma módica varanda, onde só dois pés - nem com espaço assaz para um valsa circular - cabem: é uma sepultura em pé. Talvez por isso as fechaduras da janela estão tão ferrugentes: ninguém quer o que está para além delas, como baú abandonado só com trapos errados da avó cujo nome já se esqueceu. E, curiosamente, a varanda é amarela. Dum amarelo desbotado certo, de quem tem fome, esbranquiçado, pálido, de quem morre - morre da fome, talvez. Mas foi esta varanda que eu escolhi para meu blogue. Dela contemplo todo um terraço onde alunos se movem, se agitam, se falam, se deslocam apressados ou param junto a um cinzeiro para deixar a beata. Daqui, miro o mundo. O ver verdiano de Cesário: atitude tão admirável! Mas a minha cidade não é Lisboa, nem Lisboa eu aqui relato: a minha Olissipo é o António, o Pedro, a Leonore, a Beatriz!
Não, não faço deste espaço cibernético confessionário, não! Mas é como quem diz que são as pessoas que lhe aproveitam, que lhe interessam: o mundo e suas circunvalações. O drama e tragédia do ser humano - o seu próprio drama até ou a notícia do jornal. O pensamento solto aqui achará agacho. O cordeiro - o subtil meandro de uma cogitação ou sentimento - dorme aqui com o leão - a grande construção eloquente de uma filosofia diferente. No fundo, A Varanda Amarela é um zoológico. Tudo entra por aqui adentro, como no quadro de Boccioni que começa esta pintura escrita (admirável Boccioni! Fervilhante futurismo!).
E a tudo, dou o espaço que multiplico.