segunda-feira, setembro 04, 2006

#16 Anúncio

Omnipresente, dezasseis.
Um último post para avisar da mudança de link por motivos de experimentação do Blogger Beta. Doravante, o Varanda Amarela encontrar-se-á sobre o link:


Esperemos que gostem da mudança ligeira. Este blogue não será eliminado, não só porque alguns dos posts feitos aqui não foram transferidos para o novo blogue, mas também porque o mesmo sucede, obviamente, com os comentários, que não tenciono perder.
Obrigado a todos os que acompanharam este blogue - vemo-nos no próximo.

quinta-feira, julho 20, 2006

#15 Laconismo Sentimental Diário (LSD) - Um Projecto


Começo hoje, à noite, um pequeno projecto que me ocorreu, esta semana, talvez condenado a falhar - como, de resto, tudo quando faço ou ponho as mãos. Não me expando, porque não me quero. A introdução na página certa diz ao inquisidor a santa sé toda, galileicamente. O link, foi anunciado na coluna ao lado, com os seus conterrâneos.

sábado, julho 15, 2006

#14 Diário de Bordo do Apocalipse §1

I - O 1º FIMBULWINTER

Plagiando mudando Pessoa:
«Vem a Sr.ª Maria de Lurdes Rodrigues... Aquilo é que é uma besta!»

Portugal é governado, foi governado e continuará, sem mudança, sendo governado por uma cambada de incompetentes. Todo o homem de inteligência lúcida e pura afasta-se, no completamente possível, da política impossível. Portugal acabará como país, porque não pode acabar o que já acabou: como cultura. Os homens grandes que aqui nascerem não deverão nada aos que nasceram com eles e serem grandes será independente de serem portugueses.
O ensino português hoje só pode produzir bestas quadradas porque quem o dirige, dirigiu e dirigerá é um bando de cavalgaduras. Todo o português desta geração que não for uma besta quadrada educou-se ou foi educado estrangeiradamente em insulto cuspido ao ensino pátrio praticado. (Graças a Deus que existe Erasmus!)
Declaro, Mr. Keating, que está na altura de rasgarmos esses manuais oficiais e aprendermos poesia! Poucos foram, no colégio, os que entraram no Clube dos Poetas Mortos - esses, contundo, engrandeceram e, o mais alto, racional, partiu, seguro. É esta a rota iluminada de todos os que guardaram os olhos apesar das trevas.
Repito: se alguém há dos nascituros do meu tempo - da stupid generation from 88 (White Lie) - que não é uma besta quadrada, devo-o a ser um pássaro, não há loba (rameira, em latim) que o amamentou animalesca. A vaca, de facto, só faz asneira - marrando cornadas nos exames.
Este é o último sinal do Apocalipse - começou.

O escândalo da aberração dos exames veio confirmar a palavra de todos os queixosos e a incompetência declarada da Ministra, que, elefante branco, arrasa toda a porcelana do lojista - é gordo, feio e cadavérico e não se enterra no cemitério dos da sua espécie por fim. Que se repitam os exames! Que se repitam todos! Que se instale a anarquia nas Universidades e nos concursos! Num país de ministra totalitária, só a máxima libertinagem política e burocrática nos poderá resgata. A Ministra é uma burra! A Ministra é o Anti-Cristo! A Ministra governa!
Só com o fim do Estado pode vir o fim da incompetência estatal.
Agradeçamos o Apocalipse próxima que poremos em mãos nossas.

Almadamente,
...

quarta-feira, junho 28, 2006

#13 Ode To L.A. While Thinking Of Brian Jones, Deceased; de Jim Morrison

I'm a resident of a city
They've just picked me to play
the Prince of Denmark

Poor Ophelia

All those ghosts he never saw

Floating to doom
On an iron candle


Come back, brave warrior
Do the dive
On another channel

Hot buttered pool
Where's Marrakesh
Under the falls

the wild storm
where savages fell out

in late afternoon
monsters of rhythm


You've left your
Nothing
to compete w/

Silence

I hope you went out
Smiling
Like a child
Into the cool remnant
of a dream

The angel man

w/ Serpents competing
for his palms
& fingers
Finally claimed
This benevolent

Soul

Ophelia

Leaves, sodden
in silk


Chlorine
dream
mad stifled
Witness

The diving board, the plunge
The pool


You were a fighter
a damask musky muse


You were the bleached
Sun
for TV afternoon

horned-toads
maverick of a yellow spot


Look now to where it's got

You

in meat heaven
w/ the cannibals
& jews

The gardener

Found
The body, rampant, Floating

Lucky Stiff

What is this green pale stuff
You're made of

Poke holes in the goddess
Skin

Will he Stink

Carried heavenward
Thru the halls

of music

No Chance.

Requiem for a heavy
That smile
That porky satyr's

leer
has leaped upward

into the loam


(A minha homenagem aos 60's, depois de ver o filme Stoned:
Jim Morrison louvando Brian Jones comigo ouvindo Led Zeppelin)

domingo, maio 14, 2006

#12 Despedida Pequena

Esta foi a última tira de Calvin & Hobbes, magnífica série da infância de todos e que, para mim, ainda hoje me preenche os dias, em a relendo na contra-capa de jornais e nos livros por coleccionar. Escolhi-a para celebrar tristemente - passe o paradoxo -, como eles naquele 31 de Dezembro de 1995, a minha partida deste blogue. Não perpétua (ainda há a segunda parte de Prometeu-Lúcifer para partilhar!), mas efémera demasiado. Abandono agora a cibernia para a hibernação sem sonho dos exames nacionais, que me arrancam, violentamente, da minha humanidade. Vou-me tornar um pouco mais animal (por isso digo hibernar) e ser mais menos humano. A coisa pequena, a entrada no blogue, a pétala da margarida rosa, o meu pensamento proto-filosófico, a poesia-problema, a meditação divina do mundo, o desabafo constrangido, a memória querida de um fim-de-semana no campo, uma varanda amarela: isso, que me faz humano, renego hoje para me enterrar nesta bestialidade do sistema em que, involuntário, fui posto, passivamente. Perco tudo, tudo, para me centrar no estudo, muito aplicado!, de todo um saber que sei que vou esquecer daqui a uma dezena de anos, para não dizer por meados de Agosto. Que parvoíce! Há um rei e eu restrinjo-me a bobo - vou agora aplicar os guizos no chapéu. Adeus... e até voltarei, como não cantam os Madredeus.

sexta-feira, maio 12, 2006

#11 Prometeu [em lendo a "Origem da Tragédia"]

Cita Nietzsche Goethe, a sua obra Prometeu:
Sentado aqui, eis que modelo homens
À minha imagem
Uma raça que me seja comparável,
Para sofrer e chorar,
Para gozar e jubilar,
E para não te venerar,
Como eu!
Eis que, em lendo, na aula, estas palavras, tudo, como iluminação, como eu mesmo, prometeu, roubara o fogo que algum deus olímpico escondera, uma série de encadeamentos de conceitos e noções, até à associação final da imagem.
Nestes versos do Poeta, aparece-nos um Promoteu que, primeiramente, se caracteriza pela revolta; segundo, pelo acto demiúrgico; terceiro, a ideia do sofrimento. Ante isto, é impossível não ocorrer à mente, correndo, a ideia de Lucífer-Demiurgo, numa fusão das entedidades Lúcifer (cristã) e Demiurgo (gnóstica). Lúcifer é, pela tradição, o anjo caído, que se revolta contra Deus, que resvala, ele mesmo, para o sofrimento (por isso cria também os seres humanos "para sofrer", "à minha [sua] imagem") derivado da separação de Deus e do Uno Primordial (não se leia o termo nietzschianamente). Em revolta, sugere-nos Goethe, lembrando o Demiurgo platónico-gnóstico, cria os homens: surge a matéria. Note-se, mais aterrador, a semelhança entre Lúcifer, literalmente, o que leva a luz, e Prometeu, que roubou a luz (o fogo). A própria linguagem nos parece claramente indicar uma estranha ligação entre as duas personagens.
Naturalmente, o imaginário cristão jamais poderia comportar a ideia de uma criação não divina, mas diabólica, isto é, que tudo o que existe não tenha sido criado por Deus, como afirma o Génesis. As primeiríssimas heresias cristãs, que afirmavam a matéria como mal, pareciam defender, implicita ou inconscientemente, que, a matéria, enquanto algo de claramente negativo, não podia ter a origem num sre bondoso, Deus, mas num deus menor, num demiurgo, num diabo, que, malvado, criara a matéria malvada. Não existia forma de compatibilizar as ideias, contraditórias, de Deus como criador de tudo e da matéria como algo negativo, mau. Obviamente, para suprir este dilema, o cristianismo ultrapassou esta dialéctica platónica que parece ter sido seu apanágio durante a Idade Média.
Obviamente, aquando do aparecimento da figura de Prometeu na mitologia grega este dualismo platónico estava totalmente ausente, pelo que a criação do homem em matéria (e espírito: recordemos, de novo, que não se falava ainda no maniqueísmo que Platão mais tarde introduziria ao falar de um Hiperurano onde os seres humanos existem somente enquanto almas) não é considerado um acto mau, nem, note-se, ainda sequer um acto de rebaldia. De acordo com o mito, Prometeu e o seu irmão titã criaram os seres vivos (Prometeu somente o Homem, sozinho) sob autorização de Zeus, para povoarem a terra. Nem, sequer, podemos declamar o verso de Goethe "E para te não venerar", já que, diz a tradição mítica helénica, foi Prometeu que ensinou aos homens o dever do sacrifício para com os deuses e das libações que lhes deviam. Sabendo nós que Goethe não era, de forma alguma, um ignorante nestas matérias clássicas, só podemos entender o por ele escrito como uma deliberada tentativa de associação da figura de Prometeu à de Lúcifer, no conceito de um caído e rebelado, e à do Demiurgo, que, porém, aqui, se transfigura.
Esta transfiguração é vital, no entendimento do que aqui tentamos expôr. Se o termo demiurgo contém uma carga negativa latente, um desprezo óbvio, quer por parte de Platão quer por parte dps gnósticos, que dele bebem, ele aqui surge totalmente retransfigurado, no cimo do monte tabor, ladeado do seu elias e do seu moisés: e nós, na sua contemplação, pedros, contruamos três tendas. Aqui o desprizível Demiurgo torna-se no resplendoroso Prometeu. O acto criador do velho Demiurgo, antes ele e o seu acto achados baixos, menores e maus, são agora subidos a toda uma nova categoria quando abandonamos essa terminologia satírica para com eles para falarmos da imagem helénica de Prometeu. Quem olha desprezivelmente para Prometeu? Ele é o deus menor ainda, nem deus é, é titã, o grosseiro titã, comentarão os deus olímpicos dos seus tronos de esmeraldas, mas ele é, a nós, homens, seus filhos, o pai, o criador: ele nos deu plena existência. Não achamos mais um deus menor que emprisionou os nossos espíritos, antes livres no etéreo, na matéria, achamos sim, há semelhança do Deus cristão, um criador que nos cria, pela primeira vez, inteiros, matéria e espírito (anima, em latim, aquilo que anima, ou seja, dá vida, literalmente).
Assim, Goethe opera esse milagre, naqueles versos citados por Nietzsche, de fundir, simultaneamente, as figuras de Lúcifer (no sentido da revolta) e Deus (no sentido da criação), nesse híbrido que é Prometeu. Prometeu, desde o início, elevou os homens à condição de Deus, dando-lhes o saber (do qual o fogo, em última análise, mais não é que, enquanto luz (Iluminismo), uma metáfora), o que incendiu tanto a ira de Zeus. Aqui, vemos, obviamente paralelismos bíblicos, com a Árvore do Conhecimento que Deus proibiu Eva e Adão de comerem. Mas a Serpente-Lúcifer-Prometeu dá a maçã aos homens, trazendo-lhes o conhecimento, o qual, inevitavelmente, traz sofrimento, quer ao tentador, quer aos tentados. É isso que nos diz não só o relato do Génesis, mas também o mito grego, quando, por um lado, Prometeu é agrilhoado no Cáucaso, por outro, Pandora desce à terra com os males do mundo e os liberta, punindo a nossa raça. Uma outra vez, reforça-se a ligação Lúcifer-Prometeu.
Parecemos ter aqui a confirmação da sabedoria profunda de Nietzsche, que escrevia, pouco antes de citar estes versos, "aquele que decifrar o enigma da natureza [...] há-de [...] violar as sagradas leis da moral." ou ainda "lança da sabedoria volta-se contra o sábio: a sabedoria é um crime contra a natureza". Nietzsche desprezaria esta minha interpretação desvirtuada dos seus escritos, mas parece que temos aqui a confirmação de que Diónisos (Uno Primordial) é, de facto, o contrário do Véu de Maya (princípio da individuação), é a perda do "eu", num nirvana quase budista. É, em suma, a incosciência, no sentido de não saber, o estado primitivo (por isso Uno Primordial) de Eva e Adão (em metáfora de todos os homens) até Lúcifer-Prometeu os tentar. (esta é, mais especificamente, a interpretação que Nietzsche reprovaria). É deste Uno Primordial em que tudo é paz, porque inconsciência ("Ignorance is bliss" - Cypher, Matrix) (que é a ingenuidade, a tão louvada ingenuidade, mais do que um não saber?), que Lúcifer-Prometeu quer arrancar os homens. Diz o mito que Zeus não concordava com o que Prometeu fazia aos homens, que ele [Prometeu] via como superiores a todos os restantes animais, achando que os homens deviam ser semelhantes às bestas. A sabedoria surge como uma ofensa aos deuses. Na ignorância se moviam a pré-Pirra e o pré-Deucalião (sem nomes na lenda) até Lúcifer-Prometeu lhes dar a luz (fogo), ele que, é, por Lúcifer, o que leva a luz, por Prometeu, o que vê mais longe. Note-se, na etimologia de Prometeu, o verbo ver: saber é ver, ver implica, enquanto fenómeno físico, necessariamente, a luz. Esta é a sabedoria maior, a de o ver longe, ou profecia. Pela profecia, Prometeu foi salvo: Zeus não podia dispensar saber quem seria aquele que o destronaria: preso ao poder, prendeu à rocha aquele que doutro modo mataria. Prometeu ensinou os homens, diz o mito, a estudar os astros e sabemos como nesse tempo que era o da Antiguidade, astronomia era equivalente de astrologia, e que outro intuito tem esta senão conhecer o que está para vir? Assim, vendo em Prometeu, o sentido da advinhação, vemos nele o Apolo de Nietzsche, até na forma ordenadora que traz ao homem-animal-besta, para o elevar ao patamar civilizado. O Apolo, que Nietzsche tanto critica, torna-se assim, na figura de Prometeu, o salto necessário para superar Diónisos, o estado primitivo e bárbaro.
Se a sabedoria é, como vimos, uma ameça aos deuses, como não o pode ser mais a profecia, o conhecimento do próprio destino? Os seres humanos humanos ameaçavam saber tanto como os deuses, ser tão poderosos como os deuses - e, então, que poder teriam os deuses? Obviamente, entende-se a preocupação destes. Os deuses constituem-se assim como uma espécie que existe apenas em função da conservação e execução do poder. (Um comunista podia ler aqui uma bela metáfora contra o capitalismo - pobres gregos que não sonhavem estes marxistas aproveitamentos!). O que Prometeu vem, proletário revolucionário, fazer é incentivar os homens a rebelarem-se, à semelhança de como ele se rebelou contra Zeus. Rebelado, ele pode ser mais infeliz, mais miserável, porque perdeu a benesse da paz e felicidade primordiais, que só se atingem na inconsciência, no nirvana, mas, em contrapartida, tornou-se livre, e a sua liberdade conquistada, não a cede por nada. Fora da mansão do seu senhor, o escravo não tem o pão que, todos os dias, o mestre lhe assegurava na mesa, não tem a água pura que o dominador lhe servia, mas é livre! E a única coisa pela qual pode ceder a sua liberdade (que antes dissémos não ceder jamais) é pela concessão de liberdade aos outros. Assim se entende que Prometeu, aquele que prevê, porque prevê, sabendo, a priori, do seu castigo, tenha, mesmo assim, roubado o fogo: a única coisa pela qual a liberdade é passível de ser cedida é pela própria liberdade. E, pelo fogo, Prometeu concretizou a libertação dos humanos dos deuses. Prometeu, foi, num certo sentido, o primeiro anarquista. Dizia Bakunine que "Se Deus existisse realmente, seria necessário fazê-lo desaparecer". Prometeu e Bakunine partilham a visão de um Deus que apenas procura preservar o seu poder (o que, implica, necessariamente, alguém que se submeta a esse mesmo poder e pelo qual esse poder se possa exprimir, em lhe [ao poder] obedecendo). Ante esta escravatura, os dois apelam à libertação do homem. Lúcifer, esse, procura libertar o ser humano da prisão da sua ignorância, que é inclusive a ignorância da sua prisão.
Algo, porém, ao leitor atento, parece falhar neste edifício. E, ai!, que até a mim me intrigava! Mas, como quando se escreve, tudo se desentreva, assim, em quanto me explanava em buscas de sentidos, achei-o. Sim, certo, o mito é claro nesse aspecto: depois de roubar o fogo do Olimpo, do carro de Hélio, Prometeu aconselhou os homens, que faziam fogueiras para aquecerem os alimentos e os corpos, a, para aplacar a ira de Zeus que ele previa, que lhe oferecessem um sacríficio (aqui a introdução do sacrifício, antes mencionada e atribuída ao titã). Para isso, matou-se um boi. Mas, eis companheiros, "brothers, your humble narrator" acercou-se da lenda e entendeu, enfim, o seu pormenor que não deslindava. Concentremo-nos no futuro do boi. Prometeu didiviu os restos do boi em duas partes, que envolveu em pele. A porção maior continha apenas gordura e ossos; a mais pequena repletava-se de boa carne. (há outras versões do mito, que o narram diferentemente, mas, tratam-se de matérias de pormenores ou divergências que, na medida das várias versões por nós conhecidas, em nada afectam as conclusões tiradas antes). Prometeu, ante Zeus, disse ter reservado a menor para os deuses, mas o pai do Olimpo indignou-se. Matreiro, como um Loki nórdico, Prometeu deixou, com um sorriso, Zeus escolher que porção queria e, obviamente, o guloso escolheu a maior - só para perceber como fora ludibriado. Note-se, pois, que Prometeu tudo isto fez para enganar os deuses - há aqui um sarcasmo, um desprezo. Ele introduziu o sacrifício, concordo: mas com o único intuito de ridicularizar Zeus. Por isso, o próprio sacrifício, na forma em que Prometeu o introduz, tornar-se um acto de revolta contra os deuses, não de subserviência. Goethe escrevia bem quando nos deixou o verso "E para te não venerar, /Como eu!".
Uma última questão prende-se com a criação dos seres humanos por Prometeu-Lucífer, apenas aflorada anteriormente. Lúcifer é aqui equiparado ao Demiurgo gnóstico só no sentido em que, não sendo Deus Deus, é um criador também. Segundo um os Três Livros de Enoque, bisavô de Moisés, (estes livros, não pertencendo ao cânon, foram citados e reconhecidos como inspirados por vários Pais da Igreja), Deus escolhera um grupo de anjos específicos (os quais, posteriormente, cairiam) para auxiliar na construção do Éden. A narrativa descreve como se apaixonaram pelas mulheres e lhes geraram prole, razão pela qual, segundo o autor teriam sido expulsos. Esta visão que muitos tardariam a qualificar de apócrifa está, na realidade, bastante bem documentada no Génesis. Passamos a citar o início do sexto capítulo do primeiro do Pentateuco: "Quando a humanidade começou a ser mais numerosa na terra e foram nascendo mais raparigas, os seres celestes viram que estas eram belas e cada um deles escolheu para sua mulher aquela que mais lhe agradou. [...] Havia então na terra os gigantes e continuaram depois a existir. E que os seres celestes tinham casado com as filhas dos homens e tinham gerado filhos. Foram estes os famosos heróis dos tempos antigos." (Gn, 6, 1-4). Porém, pois nos interessa especificamente este relato e só o transcrevi para maior credibilidade dar aos Três Livros de Enoque. O que estes nos revelam de importante é a intervenção directa dos anjos na criação do mundo. O texto, obviamente, não assume a possibilidade que não tenha sido Deus a criar a raça humana, mas involve directamente os caídos na feitura do mundo. Também Prometeu, como referido, cria os homens sob ordens de Zeus (ainda que este solicitasse apenas criaturas, sem especificar, para popular a terra). Se estamos perante um anjo-titã que se revolta contra a autoridade, como entender este acatamento de ordens da mesma autoridade? A tradição (do mito e do cristianismo) remete, frequentemente, a queda para depois da criação do ser humano, pelo que, sem embargo, podemos reconhecer Prometeu coerente, o mesmo Prometeu que, anteriormente, se associara mesmo a Zeus para destronar os outros titãs. Contudo, se tudo isto aqui explanamos, é numa tentativa de remeter sentido ao verso "eis que modelo homens", na tentativa de ligar mais prontamente Prometeu e Lúcifer. Para tal, tínhamos antes feito equivaler Lúcifer, na coisa de criar, ao Demiurgo gnóstico. Porém, a ligação das duas imagens que fazemos é relativamente vaga, pelo que seria mais acertado o associarmos ao binómio gnóstico Sophia/Demiurgo, que sabemos [este último] ser uma emanação de Sophia, a qual, por sua vez, era a emanação mais fraca de Deus. Lúcifer comporta esta dupla divindade: é Sophia enquanto portador de sabedoria, e é Demiurgo enquanto criador do mundo. Porém, não nos coibimos de concordar que é forçado unir, neste ponto específico, as imagens de Prometeu e Lúcifer, se não concedermos em não aceitar a versão de Goethe e do mito na sua versão mais conhecida, de que Prometeu criou, de facto, os seres humanos. Porém, ainda que este assunto seja portador de grande relevância, se aqui o tratamos foi por razões de honestidade e clarificação. Ele, na teologia nova do saber que aqui abordamos, no âmbito só em que Nietzsche a usa, mantém, independentemente da sua resolução correcta, inalteráveis e válidas as assumpções anteriormente feitas em matéria de conhecimento (fogo/luz) trazido pelo Prometeu-Lúcifer.
Estamos aptos a sintetizar então toda uma teologia alternativa: no começo, era o que chamámos de Uno Primordial: um descanso pacífico infinito de Deus/Zeus e das Suas criações. Nele, uma dessas criações (Prometeu-Lúcifer) revolta-se, ao despertar desse Uno Primordial, entendendo, enquanto criação, o seu estado de submissão ao poder instituído (Deus/Zeus). [?Cria as suas próprias criaturas: e, nesse, e apenas nesse, sentido de que cria sem que que seja a Entidade Máxima, é demiurgo.?] Aos homens ensina. Os deuses (Deus/Zeus) reagem negativamente à escalada de conhecimentos das criaturas que antes, no Uno Primordial, porque ignorantes, se lhes submetiam, sendo felizes. Com o conhecimento dissolve-se a ignorância, com ela a subserviência. Os homens escalam ao estatuto de deuses e dispensam-nos, gozando das libações que lhes prestam. Como castigo, o seu libertador (Prometeu-Lúcifer) é condenado, bem como eles mesmos. Os poderes (Deus/Zeus) surgem, pois, como vingativos, sendentos de poder, e Prometeu-Lúcifer como o salvador da Liberdade pela Sabedoria: a gnose, com a ascenção à condição igual dos deuses, e a queda necessária de belerofonte que isso implica.

Gustave Doré, Representação de Satanás
de Paradise Lost de John Milton

"He falleth like Lucifer, Ne'er to ascend again.."
And When He Falleth, Theatre Of Tragedy

Próximo: Prometeu-Lúcifer e A Queda Cristã (junto: A Ainulindalë de Tolkien)

quarta-feira, maio 03, 2006

#10 Poema Escrito em Tempo Real, de Leandro Rafael Ribeiro

Devia:
1. estar a estudar para os exames
2. estar a estudar para os próximos testes
3. estar a trabalhar no jornal da escola
4. estar a dever qualquer coisa que nem importa bem o que seja, desde que se deva
Devia...
E sei que, em breve, estarei, concordantemente
conscientemente
responsavelmente fazendo o que devo.
Porque eu, oh eu!, sou muito responsável,
extremamente responsável
magnanimamente responsável.
Quando era pequeno e bebi os refrescos por uma palhinha só para ouvir aquele barulho giro de que, em garoto, se gosta do líquido a surripar-se pelo cano exíguo do instrumento, nessa altura (em que eu também era diferente noutras coisas do que sou hoje: por exemplo, gostava de ficar sentado em frente à máquina de lavar loiça a ouvi-la, velha, rabujar com um neto que não tinha), nesse tempo eu responsabilizei-me de ficar sempre responsável.
Eu sou muito responsável.

Por isso é que até estou a escrever este poema.
Porque é uma grande responsabilidade ter um sítio na net
Porque há indivíduos (que eu não conheço) que vêm cá ler tudo o que digo.
Tudinho, tudinho, tudinho! Eles também são muito responsáveis em, com regularidade, ler.

Ah! Rai's parta a responsabilidade! Rai's parta o dever!
Sinto um gosto agreste (como se tivesse mastigado uma urze digerida com pedras pequenas que as cabras engolem enganadamente quando pastam) de ter vindo do teatro.
Não entendo (oh, claro que entendo! Só que entendo por bem que não devo entender) porque sucede deste modo, exótico.
Os meus colegas de palco estavam todos muito contentes. Eu devia estar contente?
(Digam-me: se eu devia, eu torno-me já contente! Não esteja procedendo contra a moral social!)

Sinto que falhei, redondamente,
quadrangularmente,
paralelepipedicamente,
triangulamente, tudo o que era simples e me pediam que fizesse.
Na realidade, fiz tudo o que era simples e me pediam que fizesse.
Se ao menos percebesse o absurdo do que está mal nisto!

Teatro. Te-a-tro.
(Eu devia...)
Odeio o teatro, porque nele revejo, lucidamente, a minha hipocrisia.
(Hipocrisia vem do grego e etimologicamente liga-se a actor. Eu sou culto. Disseram-me que convinha [não devia no sentido estrito do termo, mas convinha muito, muito, que é como quem diz que devia, só que num eufemismo])
Actor, entendo que sou só, nietzscheanamente, aparência da aparência.
Não é um ser real que, fingido, imita um imaginário (isso é o que faz toda a gente normal e o que é normal é sempre o que devia ser: raios que falho no dever!)
Mas eu, imaginado eu mesmo, que copio uma realidade que, só por uma mero fortuito acaso, não acontece (mas só porque, olha, aconteceu assim) não ser eu.
E o que eu sou, não é eu - é outra coisa qualquer, outra hipocrisia.

Quando conjugo verbo ser, nunca digo a primeira pessoa do singular.

Sou.
Tu és.
Ele é.
Nós somos.
Vós sois.
Ele são.

Mas, insisto, nunca tentem subentender qualquer sujeito.
De tudo, recebe, apenas, o que, aberto, te oferecem, claro.

O que sou não concorda com o meu eu.
(Por isso não os juntem!)
O que eu sou é uma coisa qualquer, esquisita, da qual não tenho bem a certeza, só podendo afirmar com a que não tenho que eu não é de modo nenhum
jamais
impossivelmente o que sou.
Eu lá hei-de ser qualquer coisa quando digo sou, eu é que não sou!
Só tudo o que quiserem, só não sou eu!
Mania das pessoas de teimarem na mentira!

Eu sei que isto está tudo mal:
Que eu devia ser um eu facilmente identificável, mas que querem? se eu fosse eu, dizia a mim mesmo, muito severo, com um Salazar com bigode «Sê eu!» e pronto! era eu!
Mas não sou! Sou o Salgueiro Maia!
Que grand'a baralhada...!
E o pior, é não ser carta nenhuma do baralho, mas ser o baralho, uma substância que em si, por si, não existe, mas é tão somente a combinação de muitas substâncias que, em si, por si, existem.

Ora descobri: eu não existo!
Declaro a verdade infalível da minha não-existência, total
completa
irrevogável!
Eu não existo!
Penso, mas não existo (e agora eu rio-me, rio-me, rio-me [como uma vaca gorda que rola pela colina a abaixo a rir-se muito, a rir-se muito, a rir-se muito] do Descartes! Palerma do Descartes! Com esta, já morto, é que ele não contava!)

O mais engraçado em não existir é que, no fundo, eu existo em todas as coisas, só porque estou em todo o lado, obviamente, não existo.
Sou como Deus.

Isto dá-me um gozo danado!
Vocês nem sabem o gozo danado que isto me está a dar!
Mas que gozo danado!
É mesmo um gozo danado!

(agora aqui eu volto-me a rir muito, muito, muito)

Isto de não existir é divertidíssimo.
A minha mãe já me chamou «Ó Leandro, vem tomar o banho!»
Mas eu não existo, por isso não posso tomar banho! Eh eh eh eh eh!
Isto é divertidíssimo, íssimo, íssimo! (Álvaro!)

Amanhã também não vou à escola: não existo!
Vai ser um espanto para os professores: «O Leandro não existe! Que coisa lhe havia de acontecer!»
(Falarão de mim como alguém que teve um acidente, sofreu um atropelo muito chato, e foi para o hospital - não que esteja em estado grave, mas lá tem de ficar uns dias e teve de levar pontos, que coisa aborrecida!)
Os meuas amigos, esses, espertos
raposos, vão comentar «Pronto, aí está! Eu sempre disse que, dia sim dia não, ele deixava de existir! Era inevitável! E pronto, agora lá está ele: inexistente!»
Os meus pais vai ser um pouco mais complicado, o caso, mas calculo que acabarão por achar confortável a minha inexistência, como um colchão japonês, daqueles duros, que, quando não os conhecemos, a gente não quer dormir lá, mas dizem-nos que é muito saudável para a vértebra e nós vamos na lengalenga e lá dormimos, muito mal, muito mal, diga-se de passagem, mas dormimos, só para fazer vontade ao dono da casa.

Isto realmente de não existir é brutalmente divertido!
De facto, deve ser por isso que o Buda se está sempre a rir.
Nunca vi uma estátua do Buda em que ele não se estivesse, como um avô careca, a rir, como se achasse muita graça àquilo tudo (não acha nada, mas pronto).
Agora eu, eu acho uma graça diabólica a isto tudo!
A estar sempre a repetir a palavra graça
graça
graça
graça
graça
graça
graça
Só para constatar como, quando escrita verticalmente em série, dá a impressão que a fila está torta!
Isto é realmente divertidíssimo! Nunca me diverti tanto na vida, nem quando , tu lembras-te?, eu ia a fazer qualquer coisa e aconteceu aquilo - foi tão engraçado! Embalo essa memória indistinta com todo o carinho dos marsupiais do mundo.

Quando eu for grande vou ser um koala, para estar sempre a dormir, a dormir pendurado de um ramo de uma árvore.
Porque dormir é a coisa mais parecida com a não-existência: aconselho vivamente toda a gente a dormir - se for tão divertido como é não existir!
Eu não sei como é dormir. Nunca dormi: tenho sempre insónias.
Insónias pelo remorso de um crime que não cometi
por aquela situação embaraçosa que nem me aconteceu
por aquela palavra que eu podia ter dito tão oportunamente, e não disse.

O meu pior é Inferno é a lembrança de todo o Bem que não fiz.
O pior, é fazerem equivaler sempre o dever ao bem.
Num mundo justo, cumprir um dever seria, com todas as letras, considerado M-A-L.

Como ir tomar banho.
Tenho de ir tomar banho.
Obviamente, tomar banho é mal.
Obviamente, eu vou tomar banho.

Leandro Rafael Ribeiro

[problemas de formatação alheios à minha vontade impediram que esta composição de Ribeiro ficasse conforme a mancha gráfica original. Pelo sucedido, as desculpas, ao poeta e ao leitor]