Todo começo é involuntário.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
«Que farei eu com esta espada?»
Ergueste-a, e fez-se.
Fernando Pessoa
Jana, 13 anos, moldava, fotografada em Odessa, Leste da Ucrânia. O pai morreu ainda nova, a mãe na cadeia, ela na droga. Três meses depois da objectiva de David Gillanders a capturar, faleceu, com SIDA, na barraca onde vivia. Viver? Choro de sarcasmo e rio de engasgo de soco mal digerido na faringe! Viver? Deus, Homem: viver! E eu tenho um computador à frente, e oiço música, e estou sentado numa cadeira, numa casa com tecto, com bolachas lá em baixo para comer agora antes de ir dormir numa cama com colchão e lençol num quarto com aquecimento central. Eu tenho demais - só pode ser. O que ando a fazer ao dinheiro, essa peste vive e lazarenta do mundo? Como posso sequer ousar ser feliz? Calculo que, coração grande, tenha compaixão dos povos, e me ocupe mais a felicidade alheia que a própria. Mas ai!, quão hipócrita é o meu sentimento! Pois ainda não só melhor do que aqueles do Hotel Rwanda, que, ante o genocídio, ao jantar, pela tevê, comentam, pondo o garfo na boca, a situação triste e exclama «Pobres deles!», mas prosseguem, pacíficos, a sua comida - para logo a seguir verem um talk-show. Deus, quem sou eu para ser tão insensível? Tenho de acreditar, insanamente, que posso mudar o mundo - ou tudo não passa duma peça disparatadamente encenada: não posso ser tão impotente como um cão preso à casota da sua condição pela corrente da sua restrita humanidade. Raios! Não, não me digam que eu me surdo!, não me digam que eu não posso acabar com a miséria de tantas mais Janas e limpar tantas mais Ucrânias! Se não acreditar na utopia, ela não terá tópos jamais! É o desistirmos sem acreditarmso que dana o nosso mundo e nos dana a nós em vidas rotineiras sem sentido que se lhes encontre ou ache, nem que procuremos debaixo do tapete da pele superficial - tudo é superficial na nossa sociedade! - dos trabalhadores de colarinhos brancos! Jana, Jana, deixa-me salvar-te!, salvo, primeiro, de mim mesmo, eu próprio...Daddy

Ontem à noite, com um grupo de amigos, tive a oportunidade de, caseiramente, na casa de um, ver o filme Awakenings, em português, acertadamente traduzido (coisa raríssima!) por Despertares, nomeado para três óscares, entre eles o de Melhor Filme e Melhor Actor (Robert De Niro), no ano de 1990.
Não pude - luta vã! - resistir à tentação de fabricar mais um blogue, olvidando o número excessivo dos que já construí, para os quais, em olhando, os visitantes vêem ruínas - quando nunca houve nada lá para que ruísse: são tão somente construções inacabadas. Porém, por muitos alicerces postos, nunca me dispûs ao que me disponho agora: um blogue no sentido original e imaculado do termo, onde, tão somente, sem preocupação, escreva, pouco ou muito, um pormenor qualquer que me chamou a atenção, os prelúdios de uma revolução ou as tristezas de um quotidiano mal fervido.